sexta-feira, 10 de maio de 2013

A Carta

Pode ser apenas um pedaço de papel velho, amarrotado e com garranchos desalinhados. Sobretudo pode ser também uma linda e única historia de amor, narrada de forma cuidadosa, e cheia de mistérios.



Amanda e Dawson,
Obrigado por virem. E obrigado por fazerem isto por mim. Não saberia a quem mais pedir.
Não sou muito de escrever, então imagino que a melhor maneira de começar seja dizendo a vocês que esta é uma história de amor. Minha e de Clara, quero dizer, e, embora eu pudesse aborrecê-los dando todos os detalhes de nosso namoro e dos primeiros anos do casamento, nossa verdadeira história - aparte que vocês vão querer ouvir - começou em 1942. Àquela altura, estávamos casados fazia três anos e já havíamos perdido nosso primeiro bebê. Eu sabia quanto Clara sofria com isso, e eu também sofria, pois não havia nada que pudesse fazer. As dificuldades afastam alguns casais. Outros, como nós, aproximam-se mais ainda por conta delas.
Mas estou divagando. Acontece bastante quando se fica mais velho, por sinal. Um dia vocês irão descobrir.
Como disse, o ano era 1942 e, para comemorar nosso aniversário de casamento, fomos assistir a Idílio em dó-ré-mi, com Gene Kelly e Judy Garland. Nenhum de nós dois tinha ido ao cinema antes, e precisamos ir até Raleigh para isso. Quando tudo acabou e as luzes se acenderam, nós simplesmente continuamos sentados, pensando no filme. Duvido que vocês o tenham visto, e não pretendo aborrecê-los com os detalhes, mas é sobre um homem que se mutila para não ser mandado à Primeira Guerra Mundial e então precisa reconquistar a mulher que ama, que passa a considerá-lo um covarde. Na época, eu tinha recebido uma convocação do Exército, então me identifiquei com algumas partes da história, porque também não queria deixar minha esposa e partir. Mas nenhum de nós dois queria pensar no assunto. Em vez disso, ficamos conversando sobre a canção principal do filme, "For Me and My Gal". Nós a cantamos durante todo o percurso de volta para casa. Uma semana depois, eu me alistei na Marinha.
É meio estranho, já que, como eu disse, o Exército havia me chamado e, sabendo o que sei agora, talvez tivesse sido melhor, levando em conta meu trabalho e o fato de que não sabia nadar. Talvez eu acabasse indo parar na oficina, fazendo manutenção dos caminhões e jipes que rodariam pela Europa. Afinal de contas, o Exército não pode fazer muita coisa se seus veículos não estiverem funcionando, certo? Mas, embora não passasse de um rapaz do interior, eu sabia que o Exército colocava você onde fosse preciso, não aonde você quisesse ir, e àquela altura todos sabiam que era apenas uma questão de tempo até atacarmos a Europa de vez. Iriam precisar de homens em terra e, por mais empolgante que fosse a idéia de enfrentar Hitler, a perspectiva de entrar para a infantaria simplesmente não me agradava.
Na seção de alistamento, havia um pôster da Marinha mostrando um homem sem camisa recarregando um canhão. Algo naquela imagem repercutiu em mim. Posso fazer isso, pensei com meus botões. Então, em vez de ir até a mesa do Exército, fui até a da Marinha e me alistei. Quando voltei para casa, Clara chorou por horas afio. Depois me fez prometer que voltaria vivo. E eu prometi.
Passei pelo treinamento básico e, em novembro de 1943, fui mandado para o USS Johnson, um destróier que estava no Pacífico. Nunca acreditem se alguém lhes disser que é mais perigoso estar no Exército ou nos Fuzileiros Navais do que na Marinha. Ou mais aterrorizante. Na Marinha, sua capacidade não adianta de nada, porque você fica à mercê do navio. Se ele afundar, você morre. Se você cair no mar, morre - ninguém vai se arriscar a parar para resgatá-lo. Não há para onde correr ou como se esconder e, depois que a idéia de que você não tem controle sobre nada entra na sua cabeça, ela não sai mais. Nunca senti tanto medo na vida. Bombas e fumaça por toda parte, incêndios no convés. Enquanto isso, os canhões eram disparados, um barulho que não se parecia com nada que eu tivesse ouvido antes, umas 10 vezes mais forte que uma trovoada, mas talvez nem isso seja suficiente para descrevê-lo. Nas grandes batalhas, os caças japoneses metralhavam o convés sem parar e os disparos ricocheteavam por todo lado. No meio disso tudo, tínhamos que continuar fazendo nosso trabalho, como se nada estivesse acontecendo.
Em outubro de 1944, estávamos perto da ilha de Samar, preparando-nos para a invasão das Filipinas. Tínhamos 13 embarcações, o que pode parecer muito, mas, tirando o porta-aviões, nossa frota era composta basicamente de destróieres e navios de escolta, de modo que não contávamos com muito poder de fogo. E então, no horizonte, vimos o que parecia ser a Marinha japonesa inteira vindo em nossa direção. Quatro encouraçados, oito cruzadores e 11 destróieres dispostos a nos mandar para o fundo do oceano. Mais tarde ouvi alguém dizer que foi como Davi contra Golias, exceto por não termos a atiradeira. E foi basicamente isso mesmo. Nossas armas nem sequer conseguiam alcançá-los quando eles abriram fogo. Então o que deveríamos fazer, sabendo que não tínhamos a menor chance?
Nós partimos para o combate. Fomos direto para cima deles. O nosso foi um dos primeiros navios a começar a disparar, o primeiro a lançar bombas e torpedos, e afundamos um cruzador e um encouraçado. Fizemos bastante estrago em outros também, mas dois cruzadores inimigos se aproximaram e começaram a disparar. Como estávamos na linha de frente, não resistimos e fomos os primeiros de nossa frota a ir a pique. Havia 327 homens a bordo e naquele dia 186 morreram - alguns deles, grandes amigos meus.
Aposto que estão se perguntando o porquê de eu contar isso. Devem estar pensando que divaguei de novo, então talvez seja melhor ir direto ao ponto. No bote salva-vidas, com toda aquela batalha acontecendo ao nosso redor, percebi que não sentia mais medo. De repente, tive a certeza de que ficaria bem, porque sabia que minha história com Clara ainda não havia terminado, efui invadido por uma sensação de paz. Podem chamar de trauma de guerra se quiserem, mas sei do que estou falando e, naquele momento, debaixo de um céu que era só explosões e fumaça, lembrei-me do nosso aniversário de casamento e comecei a cantar "For Me and My Gal", exatamente como Clara e eu tínhamos feito no carro voltando de Raleigh. Simplesmente cantei a música a plenos pulmões, como se não tivesse absolutamente nada com que me preocupar, pois sabia que, de alguma forma, Clara iria me ouvir e entender que podia ficar tranqüila. Eu havia feito uma promessa a ela e nada, nem mesmo naufragar no Pacífico, me impediria de cumpri-la.
É loucura, eu sei. Mas, como disse, fui salvo. Acabei sendo transferido para um navio de transporte de tropas. Quando me dei conta, a guerra tinha acabado e eu estava em casa. Não falei sobre a guerra depois de voltar. Não conseguia. Nem uma só palavra. Era simplesmente doloroso demais e Clara entendia isso, de modo que, pouco a pouco, voltamos a nossas vidas. Em 1955, começamos a construir esta cabana. Fiz tudo praticamente sozinho. Uma tarde, logo depois de encerrar os trabalhos do dia, me aproximei de Clara quando ela estava tricotando à sombra. Ela cantava "For Me and My Gal".
As lembranças da batalha invadiram minha mente e eu congelei. Nunca contara à minha esposa o que tinha acontecido na balsa naquele dia e fazia anos que não pensava naquela canção. Mas Clara deve ter notado algo em mim, porque ergueu os olhos e disse: "Do nosso aniversário, lembra? Nunca lhe contei, mas uma noite, quando você estava na Marinha, eu tive um sonho."Então voltou a tricotar e acrescentou: "Eu estava em um campo de flores silvestres e, embora não conseguisse ver você, eu o ouvia cantar essa música para mim. Quando acordei, não sentia mais medo. Até então, eu tinha muito medo de que você não voltasse."
Eu fiquei parado ali, abismado. "Não foi um sonho", falei enfim. Clara apenas sorriu e eu tive a sensação de que ela já esperava por aquela resposta. "Eu sei. Como disse, ouvi você cantar", falou. Depois disso, a idéia de que Clara e eu tínhamos uma ligação especial e muito forte - espiritual até, alguns diriam - nunca me abandonou.
Alguns anos mais tarde, decidi fazer o jardim e a trouxe aqui no nosso aniversário para mostrá-lo a ela. Não era grande coisa na época, nada parecido com o que é agora, mas ela jurou que era o lugar mais bonito do mundo. No ano seguinte, eu arei um pouco mais de terra e plantei mais sementes, o tempo todo cantarolando nossa música. Fiz a mesma coisa todos os anos, até o dia em que Clara faleceu. Então eu espalhei suas cinzas aqui, no lugar que ela amava.
Mas fiquei arrasado depois que ela se foi. Tinha raiva de tudo, bebia demais e me perdia aos poucos. Parei de arar a terra, de semeá-la ou de cantar porque Clara estava morta e eu não via motivo para viver. Odiava o mundo e não queria continuar nele. Mais de uma vez, pensei em me matar. Mas então Dawson apareceu. Foi bom tê-lo por perto. De certa forma, ele me ajudou a lembrar que eu ainda pertencia a este mundo, que minha missão aqui não havia terminado. Mas aí ele também foi tirado de mim.
Foi quando, depois de anos, voltei a este lugar. Não era a época certa, mas algumas flores continuavam abertas e, embora até hoje não saiba bem o porquê, quando cantei nossa música meus olhos se encheram de lágrimas. Eu chorei por Dawson, imagino, mas também chorei por mim. Porém, acima de tudo, chorei por Clara.
Naquela mesma noite, tudo começou. Quando voltei para casa, vi Clara pela janela da cozinha. Embora o som fosse baixinho, pude ouvi-la cantarolando nossa canção. Mas sua imagem era indistinta, como se não estivesse exatamente ali, e quando saí ela já havia desaparecido. Então voltei para a cabana e recomecei a arar a terra. E tornei a ver minha esposa, dessa vez na varanda. Dali a poucas semanas, depois que plantei as sementes, ela passou a vir com freqüência e consegui me aproximar mais um pouco antes que sua imagem desaparecesse. Quando as flores desabrocharam, fui para o jardim e caminhei por entre elas. Naquele dia, ao voltar para casa, eu a vi com toda a nitidez. Clara estava parada na varanda, esperando por mim, como se perguntasse por que eu havia demorado tanto para entender o que estava acontecendo. E, desde então, tem sido assim.
Ela é parte das flores, entendem ? Suas cinzas as ajudaram a crescer e, quanto mais elas cresciam, mais minha esposa retornava à vida. Enquanto eu continuasse a cultivá-las, Clara conseguiria encontrar uma maneira de voltar para mim. Então é por esse motivo que vocês estão aqui e que lhes peço que façam isso por mim. Este é o nosso lugar, um cantinho do mundo onde o amor torna tudo possível. Acho que vocês dois entenderão isso melhor do que ninguém.
Agora chegou o momento de eu me unir a Clara, de cantarmos juntos novamente. Chegou a minha hora e não tenho arrependimentos. Estou junto de minha esposa outra vez e este é o único lugar em que desejaria estar. Espalhem minhas cinzas ao vento e sobre as flores e não chorem por mim. Em vez disso, sorriam por nós, sorriam de alegria por mim e pelo meu amor.

Trecho retirado do livro O Melhor de mim - Nicholas Sparks

0 comentários: